Os anos de 2023 a 2025 consolidaram o período da maior transformação do sistema tributário brasileiro desde a promulgação da Constituição de 1988. A Emenda Constitucional nº 132/2023 refundou o modelo constitucional de tributação sobre o consumo, inspirada pelo trabalho do Centro de Cidadania Fiscal (CCiF) em conjunto com entidades da sociedade civil e o Parlamento.
As principais inovações incluem os parágrafos 3º e 4º do artigo 145 da Constituição, que cristalizaram como princípios constitucionais a simplicidade, a transparência, a justiça tributária, a cooperação, a defesa do meio ambiente e atenuação da regressividade tributária. Emerge também o princípio da não-cumulatividade plena aplicada à tributação da circulação de bens ou prestação de serviços (artigos 149-B, inciso IV, 156-A e 195, inciso V da CRFB/88), que constitui o cerne do IVA (Imposto sobre o Valor Agregado), instrumento notável por sua transparência, simplicidade e progressividade naturais.
Em complemento à EC nº 132/23, foi sancionada, em janeiro de 2025, a LCP 214/25, que regulamentou, no plano infraconstitucional, o IBS (Imposto sobre Bens e Serviços) e a CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços). Estes tributos representam a nova face do IVA-Dual Brasileiro, substituindo o ICMS, o ISS, o PIS, a Cofins e o IPI (parcialmente).
Tributação dos serviços de operadoras e seguros de saúde sob a LCP 214/25
A LCP 214/25 instituiu um regime geral de tributação do consumo amplamente não-cumulativo, neutro, progressivo e com o foco na tributação do valor agregado pelos elos da cadeia produtiva, evitando tributação em cascata e afastando a regressividade tributária. Nesse contexto, importâncias não vinculadas ao conceito de “valor-agregado” ordinariamente não integrarão a base da tributação, tais como receitas financeiras e o próprio IVA recolhido nas etapas anteriores da cadeia produtiva.
A LCP 214/25 estabeleceu um regime tributário específico para as operadoras e seguradoras de planos de assistência à saúde, levando em conta a relevância do setor de saúde suplementar e sua complementariedade com a saúde pública, respeitando sua relevância à universalização do acesso à saúde, conforme artigos 196 a 200 da Constituição, bem como a existência de mais de 51 milhões de beneficiários de planos de saúde (em 2024) em nosso país. Apesar de muitos avanços e modernização na legislação tributária que trata do Setor, ainda há pontos de melhorias e, até mesmo, alguns retrocessos passíveis de aprimoramento no texto, como posto.
Sujeitos Passivos do IBS e da CBS
O artigo 234 da LCP 214/25 sujeita ao regime específico os serviços prestados por:
- seguradoras de saúde;
- administradoras de benefícios;
- cooperativas operadoras de planos de saúde;
- cooperativas de seguro saúde; e
- demais operadoras de planos de assistência à saúde. Este escopo amplo garante uniformidade tributária setorial, evitando distorções competitivas entre diferentes modalidades de prestação de serviços de saúde suplementar.
Base de cálculo e metodologia de tributação
A base de cálculo das seguradoras e operadoras de planos de saúde está estabelecida no artigo 235 da LCP 214/25 e representa uma boa escolha do legislador para desenhar o modelo de tributação do IVA-Dual, pois estabelece a regra de basis on basis, elegendo a margem líquida como aspecto quantitativo material do fato gerador, compreendendo:
- a) Ingressos (Elementos positivos): receitas dos serviços, prêmios, corresponsabilidades, contraprestações e receitas financeiras dos ativos garantidores das reservas técnicas efetivamente liquidadas;
- b) Deduções (Elementos negativos): sinistros, indenizações pagas, cancelamentos, restituições, custos com intermediação e taxas de administração.
Simultaneamente, a legislação admite que os agentes do setor se valham do regime de não-cumulatividade plena para suas aquisições desvinculadas da atividade assistencial (os sinistros e custos de administração que já são integralmente deduzidos da base de cálculo). Esta metodologia moderna revela clara inspiração no direito tributário internacional moderno, particularmente nas experiências da Austrália, Nova Zelândia e de Singapura, que adotaram sistemas de tributação sobre a margem dos serviços de intermediação securitária e possibilidade de creditamento ao longo da cadeia, aproximando-se do “Valor efetivamente Agregado” pelos agentes setoriais.
Regime de alíquotas e creditamento
Outro avanço do texto consiste no artigo 237 da LCP 214/25, que estabelece alíquotas nacionalmente uniformes, correspondentes às alíquotas de referência reduzidas em 60%, evidenciando a relevância e o caráter social da tributação sobre serviços de saúde e preservando a neutralidade tributária do setor, evitando debates sobre guerra fiscal ou intervenção da tributação na organização dos fatores de produção dos contribuintes do setor.
Ainda há um significativo avanço, em prol da progressividade e redução de resíduos na cadeia, considerando que as operadoras e seguradoras de planos de saúde asseguraram o direito ao crédito amplo e integral de todas as suas aquisições e contratações no regime geral (com exceção dos sinistros pagos, despesas assistenciais e demais importâncias deduzidas da sua base de cálculo conforme artigo 235 da LCP 214/25).
Entretanto, o artigo 238 da mesma lei apenas autoriza o crédito de IBS e CBS para os adquirentes (contratantes/estipulantes) pessoas jurídicas que contratem essas coberturas para seus empregados em decorrência de Acordo ou Convenção Coletiva, restringindo as hipóteses de não cumulatividade, em leitura conjunta com o artigo 57, §3º, inciso IV, alínea “f”, da LCP 214/25. O crédito do IVA fica limitado ao resultado de uma fórmula que considera o valor efetivamente custeado pela pessoa jurídica na contratação dos planos de saúde (excluindo os valores de coparticipação repassados aos funcionários) e o valor do IVA efetivamente pago pela própria operadora ou seguradora de planos de saúde.
Essas restrições podem acabar por desestimular a cobertura de vidas pelos empregadores a seus empregados, sendo certo que os planos corporativos representam cerca de 80% (oitenta por cento) do mercado de planos de saúde coletivos.
Ponto crítico: tributação das receitas financeiras dos ativos garantidores das reservas técnicas
A previsão legislativa e suas condições
O artigo 235 da LCP 214/25 inclui as receitas financeiras dos ativos garantidores das reservas técnicas na base de cálculo do IBS e CBS, constituindo exceção à regra geral do novo sistema de tributação sobre o consumo, que, ordinariamente não tributa receitas financeiras (exceto instituições financeiras bancárias típicas).
Ainda assim, no caso das seguradoras e operadoras de planos de saúde, o § 4º do artigo 235 estabeleceu critérios rigorosos para o reconhecimento das receitas financeiras como efetivamente liquidadas, exigindo cumulativa e concomitantemente: a liquidação ou resgate do ativo garantidor; e a redução do total das provisões técnicas lastreadas por ativo garantidor. Assim, na hipótese de ocorrência cumulativa e concomitante das duas condições acima admitir-se-ia, em nossa leitura fria da legislação posta, a inclusão da receita financeira relativa àquele período de apuração específico (não a sua totalidade) na base de cálculo do IBS e da CBS.
O § 6º exclui da base de cálculo receitas financeiras desvinculadas da alocação de recursos oriundos do recebimento de prêmios e contraprestações formadores dos ativos garantidores das reservas técnicas.
Conflito com o posicionamento do STF
- Precedente do RE 400.479-RJ e Tema 1.309
O julgamento do RE nº 400.479-RJ pelo STF representa marco jurisprudencial sobre tributação das receitas financeiras das reservas técnicas. O voto condutor do ministro Cezar Peluso, complementado pelo ministro Dias Toffoli, estabeleceu distinção fundamental entre receitas da atividade empresarial típica e receitas financeiras de aplicações compulsórias.
Importante destacar que, em agosto de 2024, o STF reconheceu por unanimidade a repercussão geral do Tema 1.309, que trata especificamente da “Exigibilidade do PIS e da Cofins sobre as receitas financeiras oriundas de aplicações financeiras das reservas técnicas de empresas seguradoras”. O relator, ministro Luiz Fux, em sua manifestação, afirmou que o tema se distingue do Tema 372 (instituições financeiras puras), reconhecendo a atividade típica das seguradoras é absolutamente diferente.